A natureza jurídica das calçadas urbanas e a responsabilidade primária dos Municípios quanto à sua feitura, manutenção e adaptação para fins de acessibilidade! ♿
As calçadas urbanas figuram como bens públicos
municipais. São inconstitucionais as leis que imputam a responsabilidade
precípua pela sua feitura, manutenção e adaptação aos particulares
proprietários de imóveis urbanos.
Luíza Cavalcanti Bezerra
1. INTRODUÇÃO
Nas vias públicas, existem, em regra, três segmentos de concreto apostos
em paralelo, a saber, um caminho apropriado para o trânsito de veículos e dois
passeios a ele adjacentes, destinados à circulação de pedestres. Estes últimos
consistem nas calçadas, caminhos de uso público que têm, por objetivo
fundamental, propiciar às pessoas de diferentes idades e condições físicas um
translado seguro pelas ruas da cidade.
Inobstante sua relevância social, as calçadas não têm sido construídas
de maneira acessível, tampouco mantidas de forma adequada, situação que
compromete o direito constitucional de ir e vir dos
pedestres, especialmente no que concerne a idosos, crianças e pessoas com
deficiência. Trata-se, pois, de situação que precisa ser remediada incontinenti,
sob pena de afronta direta e contínua à liberdade fundamental de locomoção dos
cidadãos.
Tomando por base esse contexto, o presente artigo pretende analisar, de
maneira sucinta, a natureza jurídica das calçadas urbanas e aferir de quem é a
responsabilidade precípua pela sua feitura e manutenção. Far-se-á, com base
nisso, uma ponderação acerca da constitucionalidade das leis municipais que
impõem essa obrigação aos proprietários dos imóveis, tomando-se por parâmetro
as normas da lavra do Município de Natal/RN.
2. NATUREZA JURÍDICA DAS CALÇADAS URBANAS
O Código de Trânsito Brasileiro, em seu Anexo I, traz o conceito
normativo de calçada, definindo-a como “parte da via, normalmente segregada e
em nível diferente, não destinada à circulação de veículos, reservada ao
trânsito de pedestres e, quando possível, à implantação de mobiliário urbano,
sinalização, vegetação e outros fins”. Constata-se, desde logo, que o
legislador pátrio consagrou a calçada como parte integrante da via pública,
esclarecendo a sua independência dos lotes em frente aos quais se instala, o
que leva à inevitável conclusão de que figura a calçada como bem público por
excelência.
Nesse contexto, vale relembrar que, nos termos do artigo 98 do Código
Civil, bens públicos são aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito
público interno, id est, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, além
dos respectivos entes integrantes da Administração Indireta[1].
Sob essa perspectiva, o professor José dos Santos Carvalho Filho ensina que
“como regra, as ruas, praças, jardins públicos, os logradouros públicos
pertencem ao Município”[2]. Levando-se em consideração que as
ruas e logradouros consistem justamente nas chamadas vias públicas, bem como
que as calçadas, por definição legal, são partes integrantes dessas vias, não
há outra conclusão possível senão a de que são as calçadas bens públicos
municipais[3].
Reconhecendo essa característica, o Município de Natal, em consonância
com o disposto no Código de Trânsito Brasileiro, editou a Lei nº 275, de 12 de
março de 2009, cujo artigo 2º dispõe que a calçada consiste na “parte da via
pública não destinada à circulação de veículos, normalmente segregada e em
nível diferente, destinada à circulação de pessoas, bem como à implantação de
mobiliário urbano, equipamentos de infra-estrutura, vegetação, sinalização e
outros fins quando possível”[4]. Nesse mesmo sentido, o artigo 3º,
inciso XII, da Lei Complementar nº 55/2004 – Código de Obras e Edificações no
Município de Natal – definiu a calçada como “o espaço existente entre o lote e
o meio fio”.
Inobstante haja, na referida legislação municipal, o reconhecimento de
que são as calçadas bens públicos municipais, o artigo 11 da própria Lei
Municipal nº 275/2009 atribui ao particular que detenha imóvel contíguo à
calçada a responsabilidade precípua pela sua execução e manutenção, preceito
cuja (in)constitucionalidade será analisada no próximo tópico.
3. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL QUE IMPUTE AOS PARTICULARES ARESPONSABILIDADE PRIMÁRIA QUANTO À FEITURA, MANUTENÇÃO E ADAPTAÇÃO DAS CALÇADASURBANAS
Conforme elucidado no tópico anterior, as calçadas integram o rol de
bens públicos municipais e, nessa condição, devem ser construídas e mantidas
pelo Poder Público municipal. Ocorre, todavia, que as legislações municipais,
em sua maioria, têm atribuído aos particulares proprietários dos imóveis que se
alinham à calçada pública a responsabilidade primária pela execução e
manutenção dessa parte da via.
Traz-se, como exemplo nesse sentido, o disposto no artigo 11 da Lei nº
275/2009, referente ao Município de Natal/RN, in litteris:
Art.
11. os responsáveis por imóveis nos
termos do art. XX desta Lei, edificados ou não, situados em vias ou logradouros
públicos dotados de calçamento ou guias e sarjetas são obrigados a construir as respectivas calçadasna extensão correspondente a sua testada e mantê-las em perfeito estado de conservação. (grifos
acrescentados).
É de se questionar, pois, qual seria o fundamento jurídico dessa
obrigação imputada ao cidadão.
Já podem ser excluídas, desde logo, as hipóteses de intervenção do
Estado na propriedade privada, porquanto, conforme
elucidado no decorrer deste texto, a titularidade das calçadas, assim como de
toda a via pública, é do próprio Município. Não subsiste, também, o argumento
de que se estaria falando em exercício do poder
de polícia administrativa.
Com efeito, o poder de polícia consiste numa prerrogativa da
Administração para interferir nas relações jurídicas privadas. Consoante os
ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder de polícia pode ser
compreendido em sentido amplo ou estrito. Na visão ampla, refere-se ao
“complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da
liberdade e da propriedade dos cidadãos” (destaques acrescidos). Em acepção
mais estrita e específica, o poder de polícia consiste nas intervenções
abstratas (normas) ou concretas (autorizações, licenças, injunções) do Poder
Executivo na esfera particular, com o fito de prevenir e obstar o
desenvolvimento de atividades colidentes com os interesses sociais[5].
Note-se, pois, que a esfera de atuação do poder de polícia
administrativa delineia-se essencialmente pela possibilidade de se impor
condutas ou restrições com o objetivo de impedir que os particulares, no âmbito
de sua esfera privada – liberdades e propriedades –, atuem de modo nocivo aos
interesses da coletividade.
No caso específico de bens públicos de uso comum, como as calçadas, o
poder de polícia pode servir de fundamento para a vedação do avanço da
propriedade do lote para a área correspondente à calçada a ele contígua, como,
também, pode proibir o particular de colocar obstáculos no local, como árvores,
cadeiras ou mesas. Não legitima, entretanto, a exigência normativa para que o
particular seja incumbido da obrigação primária de construção e manutenção
dessas calçadas, porquanto, aqui, o Poder Público não está apenas restringindo
o exercício prejudicial de uma liberdade pelo cidadão, mas, sim, está
estabelecendo uma obrigação de fazer sem qualquer relação jurídica que a
fundamente.
É de se concluir, por conseguinte, que invocar o poder de polícia como
embasamento para a exigência de que os particulares assumam o ônus originário
pela execução e manutenção de um bem público, sem que lhes seja conferida
retribuição específica, figura como abuso de poder por parte do Poder Público.
Saliente-se, ainda, que essas normas abusivas afrontam diretamente o disposto
no artigo 23, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o qual, ao tratar da
competência administrativa – também chamada material ou de execução –,
atribui aos entes federados, de maneira expressa, a competência quanto à
conservação do patrimônio público, in litteris:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios:
I
- zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público;
Nesse quadrante, constata-se que lei municipal que disponha ser do
particular a obrigação quanto à construção e manutenção de calçadas que
porventura sejam contíguas aos seus imóveis, como é o caso da legislação do
Município de Natal, padece de inarredável inconstitucionalidade, uma vez que a
Constituição Federal de 1988 é expressa ao atribuir a competência do ente
público, em cada uma das esferas federativas, para conservar o patrimônio
público respectivo.
Resta claro, portanto, que normas com esse conteúdo, por serem
materialmente inconstitucionais, precisam ser afastadas do ordenamento
jurídico, para que se possa exigir do Poder Público municipal, titular legítimo
das obrigações pertinentes aos bens públicos municipais, a obrigação de
construir e manter as calçadas urbanas de sua alçada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme analisado no decorrer deste artigo, as calçadas figuram como
bens públicos municipais e, sob essa perspectiva, mostra-se patente a
inconstitucionalidade das leis que imputam a responsabilidade precípua pela sua
feitura, manutenção e adaptação aos particulares proprietários de imóveis
urbanos.
Ressalte-se, ainda, que a atribuição de obrigações aos cidadãos quanto
às calçadas que se situam em frente aos seus imóveis, além de ter como
consequência jurídica uma afronta à Constituição, tem, como resultado prático,
a absoluta ausência de padronização legal dessa parte da via pública,
circunstância que inviabiliza a concretização da acessibilidade plena nas
cidades. Repise-se, no ponto, que a ausência de acessibilidade acarreta, ainda,
outra ofensa à Constituição, uma vez que impede o exercício da liberdade
individual de ir e vir das pessoas
com deficiência ou com dificuldade locomoção.
Constata-se, portanto, que os Municípios precisam ser formalmente
incumbidos da responsabilidade pelas suas calçadas urbanas, de modo a se
permitir que a sociedade e os órgãos de defesa dos interesses coletivos possam
deles exigir tanto a construção das calçadas, quanto a sua manutenção e
adaptação para fins de acessibilidade.
NOTAS
[1]Código Civil, art 98. São públicos os bens do domínio nacional
pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros
são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
[2]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 1243.
[3] De acordo com o inciso I do artigo 99 do Código Civil, os rios,
mares, estradas, ruas e praças consistem em bens
de uso comum do povo, de modo que essa também deve ser a classificação adotada
quanto às calçadas urbanas no que se refere à destinação dos bens públicos.
[4]Destaque-se, ainda, que o inciso XXXIX do artigo 3º da Lei Municipal nº
275/2009 conceitua “via pública” como a “superfície por onde
transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo a calçada,
a pista, o acostamento, a ilha, o canteiro central e similares, situada em
áreas urbanas e caracterizadas principalmente por possuírem imóveis edificados
ao longo de sua extensão” - grifos acrescentados.
[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 772.