O DIREITO À CIDADE ♿
O RETRATO ATUAL:
Segundo o Censo de 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, cerca de um quarto da população brasileira tem pelo menos um tipo de deficiência; visual, auditiva, motora ou intelectual, num total de 45 milhões de pessoas. O número equivale a 24% dos 190 milhões de habitantes do País. Dessas 45 milhões de pessoas, aproximadamente 29,5% são portadores de alguma deficiência motora, ou seja, possuem algum tipo de alteração no sistema locomotor que compromete sua funcionalidade cotidiana.
Apesar de o país ter um dos mais modernos conjuntos de leis e decretos com relação à acessibilidade, a realidade difere-se drasticamente do âmbito prático, no qual o Brasil se caracteriza como um dos países menos preparados para oferecer as condições necessárias para a inclusão dos cidadãos portadores de alguma deficiência na sociedade.
O despreparo se caracteriza entre outros, com as calçadas irregulares e estreitas; rampas, que quando existentes, são verdadeiros obstáculos; ruas esburacadas; desníveis acentuados entre meios-fios. São muitas dificuldades e poucas soluções. A preocupação com o transeunte é quase nula, e parece não haver planejamento anterior à obra de maneira a oferecer acesso a todos. De acordo com o estudo Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios do IBGE, divulgado no dia 26 de maio de 2012, pelo Jornal Correio Braziliense, apenas 4,7% das ruas brasileiras possuem rampa para cadeira de rodas. A situação ainda é pior em municípios com população entre 50 mil e 100 mil habitantes, nos quais o percentual chega a 2,1%. No Distrito Federal a porcentagem é de 16,5%. O estudo considerou: a presença de rampa, iluminação, pavimentação e o estado de conservação da calçada.
Isso quer dizer que, em 83,5% das ruas do DF um cadeirante não consegue se movimentar sem a ajuda de terceiros. Este aspecto não se restringe as ruas da capital federal, mas também ao sistema de transporte como um todo, que carece de melhor preparação para receber portadores de mobilidade reduzida. A própria rodoviária do Plano Piloto, grande centro de movimentação de pessoas, tem os dois elevadores disponíveis fora de funcionamento, ou seja, em manutenção permanente. Isto faz com que os que necessitem utilizá-los: cadeirantes, pessoas com mobilidade reduzida, idosos e gestantes não tenham alternativa a não ser utilizar as escadas rolantes, que nem sempre funcionam, ou até mesmo utilizar um caminho alternativo, muito mais extenso do que o normal, que consiste em passar pelo dito “Buraco do Tatu”, passagem subterrânea, que liga o eixão norte ao sul, com intenso tráfego e riscos para os pedestres.
Essa situação se opõe completamente aos preceitos garantidos pelo Artigo Constitucional abaixo descrito:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Liberdade, igualdade e segurança estão de alguma maneira relacionadas à acessibilidade. Não há liberdade sem mobilidade, dessa forma, a condição precária das ruas, meios de transportes, a inacessibilidade aos estabelecimentos comerciais não se configuram apenas como
dificultadores, mas como cerceadores da liberdade de ir e vir, pois aprisionam e limitam aqueles que necessitam da cadeira de rodas para se locomover, estudar, trabalhar, divertir, tratar-se.
Não há igualdade enquanto a qualidade da infraestrutura determinar quem vai poder ou não se locomover em determinado local. E por fim, como pode haver segurança se as próprias pessoas necessitadas têm de se expor a vários riscos para realizar seus trajetos diários?
Essas indagações têm como solução a acessibilidade. Uma vez que ela promove mudanças estruturais e a construção de meios sociais que abrangem toda a coletividade, aspecto tratado por Henri Lefebvre em O Direito à Cidade.
O DIREITO À CIDADE
A CIDADE DE LEFEBVRE:
"Urbs, civitas e polis abrangem a cidade em sua estrutura física e na organização social que ela demanda. Da Grécia antiga surge a polis, local de encontro público e ensaio do que entendemos por política. Do latim, vem a ideia de civis ou civitas: cidadão, cidadania e civilização. Dessa mesma língua, veio a urbs, o urbano, que demarca o espaço territorial da produção e da vida."4
O direito à cidade introduzido pelo filósofo Henri Lefebvre na obra Le droit à la ville (1968), caracteriza-se como uma nova forma de pensar a construção de um meio urbano. Enquanto na época se valorizava o racionalismo, a burocratização e o urbanismo modernista na criação de cidades planejadas, Lefebvre expressava a importância da construção orgânica da cidade pela coletividade.
Dessa maneira, o direito à cidade engloba muito mais do que o direito à moradia ou ao convívio urbano, ele dá ao ser humano o direito de mudança, o direito de poder se modificar ao modificar a cidade. Pois, à medida que o homem se transforma, a cidade também muda, adequando-se a esse novo aspecto de seus moradores.
Com Lefebvre a cidade torna-se meio de criação e produção do espaço urbano pelo povo, e meio de socialização e participação dos cidadãos, fazendo com que cada comunidade e individuo tenha espaço para manifestar suas diferenças.
Depois de Lefebvre muitos outros documentos referentes ao conceito foram produzidos, como: o Estatuto da cidade, a carta européia de "Compromisso das cidades com os Direitos Humanos", a "Carta Mundial do Direito à Cidade". Todos esses documentos tiveram papel central para garantir que as exigências do direito à cidade fossem incluídas nas diretrizes políticas ao redor do mundo. No Brasil essas perspectivas estão ligadas ao Artigo 182 da Constituição Federal brasileira.
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.” 5
Nesse sentido, o direito à cidade também está ligado aos direitos fundamentais (políticos, sociais, econômicos, ambientais etc.), e à obtenção de uma qualidade de vida. Uma vez que é na cidade que esses direitos são concretizados. É na cidade que o cidadão exerce seus deveres e usufrui dos seus direitos.
Além desses parâmetros, há também o Estatuto da Cidade, já citado anteriormente, que concebe uma série de exigências que as cidades e seus habitantes deveriam atender, tais como a garantia de cidades sustentáveis, direito à moradia, ao saneamento básico, à infraestrutura urbana, aos serviços públicos, ao transporte e ao lazer.
Entretanto, esses parâmetros constituem na realidade uma situação ideal de cidade. Na prática, uma cidade multifacetária decorre não só das características individuais de cada individuo, mas das grandes desigualdades socioeconômicas presentes nesse espaço urbano. É possível perceber claramente uma divisão entre centro elitizado e periferia marginalizada. As ruas mudam, a maneira de construção não é mais a mesma, a população é diferente. O centro monopoliza os grandes empreendimentos imobiliários, as melhores oportunidades de emprego e tem uma melhor qualidade de vida, e não obstante de a periferia carecer dessas melhorias, é ela que na maioria das vezes fornece ao centro a mão de obra de que ele necessita.
Brasília é um exemplo típico de cidade com grande assimetria social. A cidade, que foi planejada para receber todas as classes de maneira que não houvesse distinções entre seus residentes, hoje é o retrato de uma dualidade. Há o Plano Piloto, ocupado pela elite, e as diferentes Regiões Admistrativas que comportam as pessoas de classes mais baixas.
O Plano Piloto, caracterizado como a região central de Brasília, foi planejado, e as outras Regiões Administrativas são meramente o resultado do crescimento populacional da região. Enquanto o Plano carrega o poder público como simbolo de garantia aos direitos fundamentais, a “periferia” é caracterizada por um povo que, em sua maioria, de tanto ser excluído dessa realidade, não sabe nem que tem esses direitos.
Não é somente uma questão de garantia de direitos, o tema aborda a inclusão do cidadão na construção de cidade e na vivência dentro desse meio social, uma vez que a cidade não é apenas formada por suas características físicas e arquitetura, mas também por sua característica identitária, e pela identidade de seus moradores. É esse conjunto de diferenças e similaridades que torna possível o sentimento de pertencimento por parte da população, ou seja, um sentimento de identificação com aquele meio.
Se essas características tornam a cidade acessível a qualquer cidadão no âmbito subjetivo, já, no sentido físico, tornar uma cidade acessível para todos os cidadãos significa promover acesso e permitir mobilidade a todos.
2.2. O DIREITO À CIDADE E A ACESSIBIDADE.
Lefebvre sugere a ideia de integração da sociedade em prol de um objetivo comum: a construção de uma cidade; acessibilidade suscita a ideia de integração dentro da própria cidade.
Acessibilidade ultrapassa questões de infraestrutura, abarca medidas ligadas ao transporte, lazer, trabalho, e, relaciona-se principalmente com o direito ao convívio urbano. Direito que todas as pessoas deveriam ter de participar da cidade, direito de mobilidade, direito ir e vir para onde quiserem, sem serem impedidas por um lance de escada, rampas obstruídas ou por calçadas mal feitas.
Uma cidade acessível beneficia a todos os seus moradores sejam eles portadores de necessidades especiais ou não.
Tanto os idosos como as grávidas também carecem de cuidado especial, porém não somente eles, como todos os integrantes da comunidade, pois todos estão sujeitos a sofrer algum tipo de acidente. E, toda essa coletividade necessita de um meio com características favoráveis para que possam ter uma qualidade de vida razoável.
Em continuidade com o pensamento de Lefebvre, acessibilidade compete a todos os membros da sociedade. Como a obra física é feita pela população, a obra social também precisa ser feita por ela. Uma vez que, o assunto não compete apenas às mudanças físicas, possibilitar acesso significa respeito à individualidade das pessoas, à pluralidade, à multiplicidade e aos diferentes ângulos de visão.
"A igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais" (Aristóteles).6
Acima de tudo, o que o direito à cidade e acessibilidade enfatizam é o principio de isonomia. Todos os indivíduos devem ter as mesmas oportunidades de participação no meio urbano, para esta finalidade a acessibilidade implica em favorecer os meios para que aqueles que tenham alguma dificuldade possam participar da mesma maneira daqueles que não a tem. E, à medida que esses meios vão sendo oferecidos, a deficiência deixa de ser algo considerado como aquilo que falta à pessoa, e passa a ser uma característica física ou sensorial da pessoa. A dificuldade ainda irá existir, pois uma pessoa cega ainda será uma desigual no meio de iguais, contudo ela não será remetida apenas pela sua deficiência, mas suas qualidades subjetivas terão mais expressão do que seu trejeito físico.
Nesse sentido, a sociedade tende ser vista como um meio de iguais, de pessoas que pertencem àquela estrutura social, mas o que se argumenta aqui, na verdade é uma mudança na concepção, é perceber as diferentes maneiras de olhar. Todos têm seus próprios limites, a resolução de Lefebvre de que a cidade é a expressão das dessemelhanças da população ainda é extremamente válida.
O que é extremamente fácil para uma pessoa, pode ser um grande desafio para outra, entretanto as dificuldades de um deficiente vão além das decorrentes de sua condição física. Portanto, é dever de toda coletividade contribuir para a eliminação de barreiras, quaisquer que sejam elas, para que todos possam usufruir de maneira igualitária dos bens providos.
Ressalta-se, contudo, que não se trata apenas uma perspectiva de garantias de direitos. Há uma relação de troca mútua entre a cidade e os seus cidadãos. Conforme a pessoa com deficiência vai ganhando seu espaço na sociedade, ela também vai oferecendo contribuições para a construção desse meio urbano. Enfatiza-se o papel de agente social da pessoa deficiente, não só como ente passivo que recebe as mudanças daquele meio social, mas sobretudo como força ativa na transformação da cidade.
Essa concepção remete ao preceito de self advocacy7. Ou autodefensoria que significa a autonomia e a participação da pessoa com deficiência na defesa pessoal do seus próprios direitos. Ou seja, quando a pessoa com deficiência reivindica seus direitos sem utilizar de outra pessoa como meio intermediário entre ela e a sociedade.
A participação da coletividade na construção de um meio social não se refere apenas as cidades própriamente ditas, relaciona-se também à construção de meios urbanos como um campus universitário que apesar de não constituir uma cidade, tem todas as características difundidas por Lefebvre em “O Direito à Cidade”.